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domingo, 5 de julho de 2015

O aborto e as mulheres no Brasil


Cruzando séculos e continentes, a prática do aborto aparece nos mais diferentes registros históricos. O imperador chinês Shen Nung (2737-2696 a.C) já abordava o tema em textos que produziu. O grego Hipócrates (c. 460-c. 370 a.C), considerado o “pai da medicina”, citou métodos em seus escritos. Na América portuguesa, os primeiros jesuítas descreveram tentativas de indígenas de interromper a gravidez por meio do esforço físico excessivo. Relativamente aceito na Antiguidade, o aborto passou por maiores recriminações à medida que o Cristianismo se sedimentou pelo continente europeu. E foi dessa forma, estigmatizado, que passou a ser tratado na maior colônia portuguesa. 

Bem antes da pílula, que na segunda metade do século XX significou uma revolução nas práticas anticoncepcionais, há relatos de diferentes estratégias para evitar uma gravidez indesejada. Entre elas, preservativos feitos de tecidos, peles e tripas de animais, ou o mais prosaico, o coito interrompido. Quando os métodos falhavam, as mulheres entregavam-se a métodos arriscados para induzir o aborto: da ingestão de ervas a massagens no ventre, de duros exercícios físicos a golpes na barriga.

A legislação canônica procurou coibir por meio de penas espirituais aqueles que interrompiam uma gestação. Nos Concílios de Ancara (314-375), atual capital da Turquia, o cânone 21 trouxe a suspensão temporária da comunhão às mulheres adúlteras que abortavam; de modo semelhante, a condenação apareceu no cânone 63 do Concílio de Elvira (303-324), na atual Espanha. Concílios locais foram repetindo censuras às mulheres que abortavam. O argumento era ancorado na passagem bíblica do livro de Êxodo: “Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”.

Embora o texto sagrado não fizesse referência a isso, os cristãos distinguiram, durante séculos, o feto formado do não formado. A questão central a movimentar teólogos, juristas e médicos era em qual momento o corpo passava a receber o dom da vida, representado pela infusão da alma individual e imortal. A eliminação de um feto ainda não formado seria um assassinato? Em que fase a alma se faria presente? Hoje a posição oficial da Igreja é de há alma desde a concepção, mas em outros tempos essa resposta não era tão óbvia. Durante as épocas medieval e moderna, muitos teólogos defendiam que o aborto era um crime apenas quando realizado após 40 dias a contar da concepção. Antes dessa fase, nada de punições celestiais mais graves.


Ainda que moralmente condenável, a ideia de que a interrupção da gestação era um crime demorou a virar lei. Em 1140, a partir de iniciativa de Graciano, um monge cristão, estabeleceu-se a primeira referência legal defendendo que a morte de um feto fosse punida com medidas iguais às do homicídio. Pouco tempo depois, já não havia dúvidas entre os juristas canônicos de que o aborto causado por agressões de terceiros era também um assassinato. A perseguição legal sustentou o estigma moral, e acabou empurrando a prática para o domínio privado e clandestino. 

Enquanto os homens da Igreja discutiam sobre o destino de tantas mulheres, uma cultura ancestral manteve-se presente e vigorosa: até boa parte do século XVIII, o universo da gravidez permaneceu assunto exclusivamente feminino. Era entre gestantes e parteiras que se tramavam soluções caseiras e ocultas para conter o desenvolvimento dos fetos. Esse saber – repartido entre pobres e ricas, livres e escravas – garantiu redes de solidariedade que atravessaram séculos e hierarquias sociais.

A prevalência da figura feminina em tais assuntos foi reconhecida na legislação portuguesa: em 1570, uma lei mandava coibir mulheres “movedeiras”, acusadas de preparar bebidas abortivas para grávidas. Mas houve dificuldades de fiscalização pelo caráter clandestino das soluções, e nem mesmo os historiadores podem ter dimensão estatística do fenômeno. Como era um segredo coletivo, boa parte dos processos a que se tem acesso hoje é resultado de denúncias de pessoas próximas, intrigas pessoais ou mesmo do temor dos próprios autores, receosos de que hajam cometido um pecado grave. 

Em 1588, uma bula papal previa pena de excomunhão para todos os que direta ou indiretamente se envolvessem em abortos, fosse por meio de poções, fornecimento de remédios e venenos, fosse por agressões ou esforços excessivos impostos à gestante. Esse tortuoso caminho de condenação moral e legal ganhava novo fôlego com as reformas religiosas, quando a Igreja Católica passou a interferir de forma mais direta na vida dos fieis. 



Especialmente após o Concílio de Trento (1545-1563), a instituição firmou posição em defesa do feto, alegando que o corpo era morada sagrada do espírito, sendo a gravidez desejada ou não. A partir do século XVII, embora fosse possível observar o melhor domínio de técnicas abortivas por parte dos cirurgiões, a Igreja regulou de perto a ação de médicos e exerceu uma eficaz censura nas discussões sobre o assunto.

A íntima relação entre procriação e matrimônio era uma forma de controlar o corpo feminino, destinando-o a gerar filhos. Uma gestação indesejada e tornada pública poderia arruinar a vida de uma mulher e colocar em dúvida a reputação da família. Pouco recaía sobre os homens. Para eles as consequências poderiam, inclusive, ser positivas, pois engravidar alguém era prova cabal de virilidade. 

Com o Concílio de Trento, o fortalecimento da ideia de família caminhou de mãos dadas com o surgimento de instituições para recolher e educar órfãs, preservando sua honra – ou seja, mantendo-as afastadas de relações sexuais com homens – até que se casassem. Em paralelo, a Igreja fortaleceu ainda mais o ataque ao aborto. O resultado, verificável por todo o mundo católico, foi o substancial aumento do abandono de recém-nascidos em locais públicos ou em instituições destinadas a recolhê-los. 

A interrupção de gravidez nunca deixou de ser praticada, conforme noticiavam os viajantes. No início do século XIX, o pintor francês Jean-Baptiste Debret fez referência a uma vendedora de arruda nas ruas do Rio de Janeiro e comentou: “esta planta tomada como infusão provoca o aborto, triste reputação que aumenta sua procura”. O inglês John Luccock, na mesma época, garantiu que naquela região usava-se “dos meios da mais baixa espécie a fim de impedir o nascimento de crianças”.

O elemento racial também é fundamental para compreender melhor as clivagens morais observadas na população. Embora o fundo moral tenha seguido os mesmos moldes das comunidades católicas da Europa da Idade Moderna, onde o aborto era um pecado e um crime, no caso colonial a preservação da honra feminina privilegiou especialmente as meninas consideradas brancas. Para as pobres, a interrupção da gravidez indesejada podia significar uma estratégia de sobrevivência, mas entre brancas bem remediadas era garantia imprescindível da manutenção da honra. Mestiças quase não contavam com aparatos institucionais de ajuda, enquanto as mais favorecidas poderiam se valer com maior facilidade de instituições e redes informais de auxílio. 

Os usos do aborto conforme a hierarquia social atravessaram a história colonial, imperial e republicana. Em 1830, o Código Penal do Império considerou a prática um crime grave contra a segurança das pessoas e da vida, estabelecendo penas específicas para médicos, boticários ou fornecedores de drogas. As punições envolviam prisão e trabalho, mais brandas ou duras de acordo com o caso.

Enquanto abortistas eram excomungadas e punidas, muitas mulheres escravas e livres morreram tentando métodos heterodoxos e pouco seguros. Os homens apenas legislavam. Isso já faz muito tempo. Mas nem parece. 

Por Renato Franco



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