Cruzando
séculos e continentes, a prática do aborto aparece nos mais
diferentes registros históricos. O imperador chinês Shen Nung
(2737-2696 a.C) já abordava o tema em textos que produziu. O grego
Hipócrates (c. 460-c. 370 a.C), considerado o “pai da medicina”,
citou métodos em seus escritos. Na América portuguesa, os primeiros
jesuítas descreveram tentativas de indígenas de interromper a
gravidez por meio do esforço físico excessivo. Relativamente aceito
na Antiguidade, o aborto passou por maiores recriminações à medida
que o Cristianismo se sedimentou pelo continente europeu. E foi dessa
forma, estigmatizado, que passou a ser tratado na maior colônia
portuguesa.
Bem
antes da pílula, que na segunda metade do século XX significou uma
revolução nas práticas anticoncepcionais, há relatos de
diferentes estratégias para evitar uma gravidez indesejada. Entre
elas, preservativos feitos de tecidos, peles e tripas de animais, ou
o mais prosaico, o coito interrompido. Quando os métodos falhavam,
as mulheres entregavam-se a métodos arriscados para induzir o
aborto: da ingestão de ervas a massagens no ventre, de duros
exercícios físicos a golpes na barriga.
A
legislação canônica procurou coibir por meio de penas espirituais
aqueles que interrompiam uma gestação. Nos Concílios de Ancara
(314-375), atual capital da Turquia, o cânone 21 trouxe a suspensão
temporária da comunhão às mulheres adúlteras que abortavam; de
modo semelhante, a condenação apareceu no cânone 63 do Concílio
de Elvira (303-324), na atual Espanha. Concílios locais foram
repetindo censuras às mulheres que abortavam. O argumento era
ancorado na passagem bíblica do livro de Êxodo: “Se alguns
homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que
aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado,
conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes.
Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé”.
Embora
o texto sagrado não fizesse referência a isso, os cristãos
distinguiram, durante séculos, o feto formado do não formado. A
questão central a movimentar teólogos, juristas e médicos era em
qual momento o corpo passava a receber o dom da vida, representado
pela infusão da alma individual e imortal. A eliminação de um
feto ainda não formado seria um assassinato? Em que fase a alma se
faria presente? Hoje a posição oficial da Igreja é de há alma
desde a concepção, mas em outros tempos essa resposta não era tão
óbvia. Durante as épocas medieval e moderna, muitos teólogos
defendiam que o aborto era um crime apenas quando realizado após 40
dias a contar da concepção. Antes dessa fase, nada de punições
celestiais mais graves.
Ainda
que moralmente condenável, a ideia de que a interrupção da
gestação era um crime demorou a virar lei. Em 1140, a partir de
iniciativa de Graciano, um monge cristão, estabeleceu-se a primeira
referência legal defendendo que a morte de um feto fosse punida com
medidas iguais às do homicídio. Pouco tempo depois, já não havia
dúvidas entre os juristas canônicos de que o aborto causado por
agressões de terceiros era também um assassinato. A perseguição
legal sustentou o estigma moral, e acabou empurrando a prática para
o domínio privado e clandestino.
Enquanto
os homens da Igreja discutiam sobre o destino de tantas mulheres,
uma cultura ancestral manteve-se presente e vigorosa: até boa parte
do século XVIII, o universo da gravidez permaneceu assunto
exclusivamente feminino. Era entre gestantes e parteiras que se
tramavam soluções caseiras e ocultas para conter o desenvolvimento
dos fetos. Esse saber – repartido entre pobres e ricas, livres e
escravas – garantiu redes de solidariedade que atravessaram
séculos e hierarquias sociais.
A
prevalência da figura feminina em tais assuntos foi reconhecida na
legislação portuguesa: em 1570, uma lei mandava coibir mulheres
“movedeiras”, acusadas de preparar bebidas abortivas para
grávidas. Mas houve dificuldades de fiscalização pelo caráter
clandestino das soluções, e nem mesmo os historiadores podem ter
dimensão estatística do fenômeno. Como era um segredo coletivo,
boa parte dos processos a que se tem acesso hoje é resultado de
denúncias de pessoas próximas, intrigas pessoais ou mesmo do temor
dos próprios autores, receosos de que hajam cometido um pecado
grave.
Em
1588, uma bula papal previa pena de excomunhão para todos os que
direta ou indiretamente se envolvessem em abortos, fosse por meio de
poções, fornecimento de remédios e venenos, fosse por agressões
ou esforços excessivos impostos à gestante. Esse tortuoso caminho
de condenação moral e legal ganhava novo fôlego com as reformas
religiosas, quando a Igreja Católica passou a interferir de forma
mais direta na vida dos fieis.
Especialmente
após o Concílio de Trento (1545-1563), a instituição firmou
posição em defesa do feto, alegando que o corpo era morada sagrada
do espírito, sendo a gravidez desejada ou não. A partir do século
XVII, embora fosse possível observar o melhor domínio de técnicas
abortivas por parte dos cirurgiões, a Igreja regulou de perto a
ação de médicos e exerceu uma eficaz censura nas discussões
sobre o assunto.
A
íntima relação entre procriação e matrimônio era uma forma de
controlar o corpo feminino, destinando-o a gerar filhos. Uma
gestação indesejada e tornada pública poderia arruinar a vida de
uma mulher e colocar em dúvida a reputação da família. Pouco
recaía sobre os homens. Para eles as consequências poderiam,
inclusive, ser positivas, pois engravidar alguém era prova cabal de
virilidade.
Com
o Concílio de Trento, o fortalecimento da ideia de família
caminhou de mãos dadas com o surgimento de instituições para
recolher e educar órfãs, preservando sua honra – ou seja,
mantendo-as afastadas de relações sexuais com homens – até que
se casassem. Em paralelo, a Igreja fortaleceu ainda mais o ataque ao
aborto. O resultado, verificável por todo o mundo católico, foi o
substancial aumento do abandono de recém-nascidos em locais
públicos ou em instituições destinadas a recolhê-los.
A
interrupção de gravidez nunca deixou de ser praticada, conforme
noticiavam os viajantes. No início do século XIX, o pintor francês
Jean-Baptiste Debret fez referência a uma vendedora de arruda nas
ruas do Rio de Janeiro e comentou: “esta planta tomada como
infusão provoca o aborto, triste reputação que aumenta sua
procura”. O inglês John Luccock, na mesma época, garantiu que
naquela região usava-se “dos meios da mais baixa espécie a fim
de impedir o nascimento de crianças”.
O
elemento racial também é fundamental para compreender melhor as
clivagens morais observadas na população. Embora o fundo moral
tenha seguido os mesmos moldes das comunidades católicas da Europa
da Idade Moderna, onde o aborto era um pecado e um crime, no caso
colonial a preservação da honra feminina privilegiou especialmente
as meninas consideradas brancas. Para as pobres, a interrupção da
gravidez indesejada podia significar uma estratégia de
sobrevivência, mas entre brancas bem remediadas era garantia
imprescindível da manutenção da honra. Mestiças quase não
contavam com aparatos institucionais de ajuda, enquanto as mais
favorecidas poderiam se valer com maior facilidade de instituições
e redes informais de auxílio.
Os
usos do aborto conforme a hierarquia social atravessaram a história
colonial, imperial e republicana. Em 1830, o Código Penal do
Império considerou a prática um crime grave contra a segurança
das pessoas e da vida, estabelecendo penas específicas para
médicos, boticários ou fornecedores de drogas. As punições
envolviam prisão e trabalho, mais brandas ou duras de acordo com o
caso.
Enquanto
abortistas eram excomungadas e punidas, muitas mulheres escravas e
livres morreram tentando métodos heterodoxos e pouco seguros. Os
homens apenas legislavam. Isso já faz muito tempo. Mas nem parece.
Por Renato Franco
Disponível
em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/especial-aborto-entre-deus-e-as-mulheres